Nunca chegou a ser promulgada no Brasil a legislação internacional que baseia o documento do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), tão celebrado por apoiadores e candidatos petistas ao criar a narrativa de que “a ONU mandou soltar o Lula” e também “decidiu que ele deve participar da eleição e ter espaço na mídia”.
Funciona assim: todos os tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu são negociados pelo Poder Executivo, através das autoridades responsáveis como embaixadores e Ministros de Estado. Em caso de negociação bem-sucedida, o texto desse acordo é enviado para ser apreciado pelo Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado Federal). Uma vez aprovado nas devidas comissões e Plenário das Casas, o agora Decreto Legislativo é “ratificado” (ou seja, confirmado) e vai para o presidente da República, que deve “promulgar” o texto do tratado internacional.
A promulgação é o último passo antes do texto ser incorporado à legislação nacional vigente. (Veja aqui o trâmite de Atos Internacionais no Congresso, com base na Constituição e nos Regimentos Internos da Câmara dos Deputados, Senado Federal e Congresso Nacional).
O procedimento de aprovação de um tratado internacional é estabelecido na Constituição Federal, com a junção do art. 49, inciso I, com o art. 84, VIII. O artigo 49 trata da competência do Congresso para resolver sobre os tratados. E o artigo 84 é o dispositivo constitucional que versa sobre a competência exclusiva do Presidente da República de assinar o tratado, podendo esse ato ser delegado a um Ministro de Estado ou a outro servidor. Ou seja: o Executivo negocia, o Legislativo aprova e o presidente promulga o acordo internacional.
Primeiro Protocolo Facultativo e o ‘caso’ Lula
O tratado internacional que baseia a decisão do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas é o Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos (PDCP), legislação internacional aprovada pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 1966. Esse protocolo está incluído no texto aprovado no Decreto Legislativo nº 311 de 2009.
É no Primeiro Protocolo Facultativo no qual se fundamenta o pedido de Lula no Comitê de Direitos Humanos. O petista alega quatro pontos: que 1. foi preso arbitrariamente, 2. não teve direito a um tribunal imparcial, 3. não teve garantido o direito de inocência presumida e 4. seu processo sofreu “interferências”.
Mas o Brasil nunca aderiu à legislação que permitiria que o petista acionasse com um pedido “individual” o Comitê de Direitos Humanos para argumentar esses pontos, independentemente do mérito da questão. Esses pontos foram amplamente afastados pela Justiça brasileira em diversas instâncias: Lula teve julgamentos justos, acesso à defesa e ao devido processo jurídico (incluindo inúmeros recursos, 78 apenas no processo do triplex), como prevê a Lei brasileira.
Fundamentação legal; faltou promulgar
Apesar de quase todo o trâmite legal ter sido cumprido no processo de aprovação de um Acordo Internacional, tendo sido “ratificado” pelo Congresso, faltou o último passo para que o tratado fosse incorporado à legislação brasileira: a promulgação.
Segundo o professor João Grandino Rodas explicou sobre o processo de incorporação de atos internacionais na legislação brasileira, em artigo de 2015 no Conjur, “a incorporação [do ato internacional] dá-se pela sua promulgação por meio de decreto do Executivo, que torna público seu texto e determina sua execução. A Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores redige o instrumento do decreto, que será acompanhado do texto do tratado e, eventualmente, de tradução oficial. Esse decreto, assinado pelo Presidente da República e referendado pelo Ministro das Relações Exteriores, é publicado no Diário Oficial da União”.
Apesar de a Constituição não fazer referência direta à incorporação de textos de acordos internacionais, o costume no processo legislatório de aprovação dos tratados no Brasil segue o mesmo processo da elaboração de uma lei. O Brasil então segue a tradição lusitana de promulgar o tratado já ratificado por meio de decreto.
“No direito brasileiro, a promulgação e a publicação compõem a fase integratória da eficácia da lei”, explica o professor Rodas. A publicação do decreto que contém o acordo internacional, que se segue à promulgação, é condição de eficácia da lei. Apesar de essa condição também não estar prevista constitucionalmente, rege-se pelo artigo 1º do Decreto-lei 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Portanto, o documento apresentado pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU que deveria ser “obedecido”, segundo Fernando Haddad, candidato de fato do PT a presidente em 2018, acaba sendo uma mera sugestão. Não há peso jurídico.
Linha do tempo
Entenda abaixo a cronologia da tramitação dos Protocolos Facultativos do Pacto de Direitos Civis e Políticos no Brasil, da negociação à ratificação. Só faltou promulgar e publicar:
7 de outubro de 2005 – Em mensagem (veja abaixo) ao presidente da República o então secretário-geral do Ministério da Relações Exteriores no papel de Ministro de Estado Interino, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, informou a Lula que o Brasil havia aderido ao PDCP em 1992, mas não ao Primeiro nem ao Segundo Protocolo Facultativo do PDCP. Ele então propõe que o Brasil faça a adesão ao PDCP.
27 de dezembro de 2005 – O então presidente Lula envia a Mensagem nº 924/2005 aos Membros do Congresso Nacional, propondo a “consideração” de adesão ao Primeiro e Segundo Protocolos Facultativos do PDCP, nos termos da Constituição (junção do art. 49, I com o art. 84, VIII).
24 de maio de 2006 – O deputado Alceu Collares (PDT-RS), então presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados (que presidiu por 10 meses), apresentou o Projeto de Decreto Legislativo 2253/2006, transformando a Mensagem 924/2005 de Lula em projeto de lei.
2 de junho de 2006 – Após ser aprovado na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, o PDC 2253/2006 é enviado às Comissões de Direitos Humanos e Minorias e, como todos os projetos de lei, à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em tramitação com regime de “urgência”. A matéria, por se tratar de Acordo Internacional, precisa ir ao Plenário da Câmara.
5 de junho de 2008 – Quase dois anos após sair da CRE da Câmara, o PDC 2253 é aprovado no Plenário da Câmara e é enviado para o Senado Federal, como é previsto na legislação.
21 de maio de 2009 – O PDC 2253 foi transformado no projeto de Decreto Legislativo nº 139 de 2008 para tramitar no Senado. Na Comissão de Relações Exteriores do Senado, no Parecer 644/2009 da CRE, os relatores Cristovam Buarque (então PDT-DF) e Antônio Carlos Valadares (PSB-SE, relator ad hoc) e o presidente da Comissão, Eduardo Azeredo (PSDB-MG), pedem a aprovação do projeto e a adesão aos dois Protocolos Facultativos do PDCP.
16 de junho de 2009 – O projeto volta à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e é transformado no Decreto Legislativo 311/2009 e enviado para publicação no Diário oficial como Ato do Congresso Nacional, assinado pelo então presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-MA). Em 17 de junho, a Mesa Diretora da Câmara recebe o Ofício nº 932/09 do Senado Federal que encaminha o texto ratificado, para também ser publicado no Diário da Câmara dos Deputados de 11 de julho de 2009.
O projeto foi então enviado à promulgação pelo presidente da República, onde “dorme” nas gavetas do Palácio do Planalto desde então. Depois disso foram 18 meses de governo do petista Lula, cinco anos e meio de Dilma, dois anos de governo Michel Temer, e o Decreto Legislativo 311 ainda não foi promulgado.
Portanto, mesmo que pudesse ser considerada no processo judicial e eleitoral contra Lula, a “decisão da ONU” é apenas mais uma fake news.